No mês de abril, o mundo recorda a essencialidade da prevenção dos maus-tratos na infância, trazendo, no seu simbolismo, a reconhecida campanha do Laço Azul. Estávamos em 1989, quando Bonnie Finney amarrou uma fita azul à antena do carro em memória do seu neto, que perdeu a vida pelos maus-tratos cometidos pelo namorado da sua mãe. O objetivo de Bonnie era despertar a curiosidade das pessoas com quem se ia cruzando e incitar um diálogo sobre a violência infantil. O azul fora escolhido para representar a cor das marcas deixadas pelas agressões, tornando-se um símbolo permanente da dor e do sofrimento que o seu neto enfrentou.

Não haverá melhor forma de recordar todos os netos de Bonnie do que trazer ao pensamento uma visão compreensiva sobre a vivência dos maus-tratos:  caminho fundamental para a prevenção do abuso, esse sítio de profunda desumanidade.

A Organização Mundial de Saúde define os maus-tratos como “qualquer forma de maus-tratos físicos, emocionais ou sexuais, negligência, exploração comercial ou de outra natureza, resultando em dano real ou potencial à saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança” (World Health Organization, 1999). Esta definição é particularmente completa porque contém aspetos fundamentais para o entendimento deste fenómeno, nomeadamente, porque nos apela ao impacto do dano causado na sua dimensão real e imediata, mas ainda na dimensão potencial. Ao dano que surgirá ao longo do desenvolvimento, do estabelecimento futuro de relações, da consolidação da humanidade e dignidade e, ainda, nos próprios modelos de cuidado e parentalidade que a criança assumirá como adulto. E um ciclo perpetua-se.

Os maus-tratos infantis revelam-se, desta forma, uma problemática dos tempos, do hoje e do que está para vir, com inegável impacto na constituição de sociedades humanas que precisa de ser prevenido de forma sistémica, estratégica e, acima de tudo, política. A extensa investigação científica sobre abusos infantis, confirmada pela nossa experiência de terreno nas Aldeias de Crianças SOS, reforça que as variáveis que se correlacionam significativamente com as taxas de maus-tratos surgem de questões estruturais do macrossistema. Entre elas a vivência traumática dos próprios pais na infância e ausência de acesso a serviços de saúde mental, a falta de acesso à habitação, a ausência de suporte nas redes comunitárias e, acima de todas as outras variáveis, a insegurança económica e desemprego. É por demais evidente que não há como prevenir de forma estrutural os maus-tratos infantis numa sociedade sem colocar a criança, a consciência do seu desenvolvimento e impacto do trauma, no centro das decisões políticas e estratégicas de um país, em todas as áreas governativas.

Acresce-se ainda a necessidade de uma crescente consciência que a mitigação do abuso pela reparação de ciclos traumáticos leva tempo e carece de elevada especialização profissional, já que apela a movimentos transformativos internos dos indivíduos, não compatíveis com culturas de fast change a que o quotidiano atual nos apela.

Paralelamente, na realidade do nosso país, urge a revisão do atual Sistema de Promoção e Proteção para um real, especializado e sistematizado investimento nas respostas de fortalecimento às famílias em situação de vulnerabilidade. Só este investimento permitirá a diminuição dos fatores de risco e a transformação de dinâmicas relacionais e modelos de cuidado que podem causar dano à criança.

As equipas na primeira linha no apoio à família, como as do Programa de Fortalecimento Familiar das Aldeias de Crianças SOS, carecem de um investimento que apoie o reforço das equipas e a definição nacional de standards de qualidade, devidamente sistematizados. São urgentes alterações legais na regulamentação que especialize estes serviços na transformação reparadora das dinâmicas familiares, tornando os cuidadores progressivamente mais capazes de, autonomamente, assegurarem a proteção, o desenvolvimento e a dignidade dos seus filhos.

Precisamos todos de uma sociedade que, como a Bonnie, esteja disponível para um diálogo sério sobre o abuso infantil e que, em conjunto com organizações que, como a nossa, apoiam crianças em vulnerabilidade, caminhe na prevenção do perigo e na transformação da realidade de dor e sofrimento.

Uma sociedade que não descanse até que todas as crianças tenham todo o cuidado de que necessitam.

Diretora-Geral das Aldeias de Crianças SOS