Portugal tem sido, nos últimos anos, um exemplo de sucesso na mobilidade elétrica, destacando-se pela criação de uma rede de carregamento totalmente interoperável que simplifica a experiência dos utilizadores e promove a transição energética. Contudo, o novo projeto de decreto-lei que visa reformar o regime jurídico da mobilidade elétrica levanta questões importantes. É inegável que há aspetos a melhorar, mas é igualmente essencial que as alterações propostas não comprometam os avanços já alcançados.

Um dos maiores méritos do modelo português é a interoperabilidade, que permite aos utilizadores carregarem os seus veículos em qualquer posto público, com um único cartão ou aplicação, independentemente do operador ou comercializador de eletricidade. Este sistema garante simplicidade, eficiência e liberdade de escolha, sendo particularmente relevante para empresas com frotas elétricas. Estas empresas representam cerca de 70% dos veículos elétricos em circulação no país e dependem da interoperabilidade para gerir os seus carregamentos de forma centralizada e integrada.

Alterar este princípio em favor de um sistema mais fragmentado seria um retrocesso significativo. A interoperabilidade não é apenas uma vantagem competitiva, é também um fator decisivo e crítico para a adesão à mobilidade elétrica por parte dos utilizadores individuais e empresariais.

Outro ponto fundamental do modelo atual é a universalidade de acesso aos postos de carregamento. Este princípio garante que todos os utilizadores possam aceder à totalidade da rede pública, promovendo confiança e adesão à mobilidade elétrica. Permitir, ainda que dificultando, que os operadores limitem o acesso aos seus postos pode introduzir barreiras desnecessárias e prejudicar a experiência do utilizador.

Além disso, a proposta de pagamento universal através de terminais multibanco (TPA) como solução única e transversal não é prática para empresas e frotas empresariais. Estas entidades dependem da faturação centralizada para gerir os seus consumos de forma eficiente, algo que o novo modelo pode dificultar.

Embora o modelo atual tenha muitos méritos, há áreas onde pode ser melhorado nomeadamente na simplificação da apresentação dos preços ao consumidor. Atualmente, as tarifas incluem várias componentes (energia, acesso à rede, potência contratada, estacionamento), o que pode gerar confusão. Uma solução seria adotar um preço único por kWh que inclua todos os custos associados, garantindo maior transparência e facilidade na comparação entre operadores e postos de carregamento.

Outro desafio do sistema atual é o tempo excessivo necessário para licenciar e ligar novos postos à rede elétrica. Existem casos em que postos prontos ficam meses ou até anos à espera de autorizações administrativas. Este problema precisa de ser resolvido com urgência para acelerar a necessária expansão da infraestrutura.

O modelo português separa atualmente as atividades de operação dos postos (OPC) e comercialização de eletricidade (CEME). Esta separação promove uma concorrência saudável entre comercializadores e permite aos utilizadores escolherem as tarifas mais vantajosas. A proposta de fusão destas atividades pode levar a uma excessiva verticalização e à concentração do mercado nas mãos de poucos operadores dominantes, reduzindo a diversidade de ofertas e inibindo a inovação.

O número de operadores e a entrada no mercado português de grandes players internacionais demonstra que o modelo atual é atrativo para os investidores, nomeadamente os estrangeiros. Alterá-lo sem uma análise cuidadosa pode, mais que criar concorrência, afastar novos operadores e limitar as opções disponíveis aos consumidores.

O futuro da mobilidade elétrica em Portugal depende da nossa capacidade coletiva de evoluir sem destruir os alicerces que sustentam o sucesso atual. É possível melhorar o sistema sem comprometer os princípios fundamentais da interoperabilidade, universalidade de acesso e concorrência equilibrada.

Há reformas que são necessárias – como simplificar preços, acelerar licenciamentos e modernizar infraestruturas –, mas estas devem ser feitas com cautela e visão estratégica. Abandonar as conquistas alcançadas em nome de uma suposta modernização seria um erro grave.

Portugal tem uma oportunidade única para consolidar a sua posição como líder na mobilidade elétrica. Para isso, devemos preservar o que funciona bem enquanto corrigimos o que precisa ser melhorado. Afinal, evoluir não significa começar do zero, mas construir sobre bases sólidas para alcançar novos patamares.

Diretor-geral da Go.Charge