A. Quando ocorre o escândalo e que consequências esperar
As empresas familiares desfrutam de vários atributos diferenciadores, nomeadamente a vantagem única de uma confiança profundamente enraizada entre acionistas e com a comunidade, valores partilhados ou estabilidade a longo prazo. Não obstante, por vezes as circunstâncias tornam inevitável a rutura do bem estar acionista e subsequente eclosão de um escândalo. Ninguém o quer, ninguém o procura, mas às vezes acontecem mesmo.
Um escândalo numa empresa familiar pode ocorrer por várias razões — má gestão financeira, má conduta pessoal, desavenças com decisões de gestão ou suspeitas de favorecimento de descendentes, por exemplo. E é quando a família não consegue reter o problema no seu seio, o mal estar é intenso e os meios de comunicação social se apercebem disso que nasce o escândalo. As consequências são sempre terríveis, afetando a confiança entre as partes interessadas, o moral dos funcionários e a sustentabilidade geral da empresa.
Vale a pena ver as consequências de um escândalo com um pouco mais de detalhe e depois partilhar alguns exemplos, mais ou menos conhecidos dos leitores, para ilustrar o que aqui se deixa. Reservo para o final algumas recomendações sobre estratégias de mitigação.
Em primeiro lugar, há a erosão da confiança entre as partes interessadas. Esta afeta a família, clientes, funcionários e investidores. As empresas em geral e as familiares em particular dependem muito de uma reputação construída ao longo de gerações. Os escândalos, em especial os que envolvem comportamentos antiéticos ou ilegais, podem prejudicar gravemente esta confiança.
Um escândalo de grande repercussão, envolvendo peculato, fraude ou outra má conduta, pode manchar seriamente o nome da família, fazendo que os clientes se afastem, os investidores retirem o apoio e os parceiros rompam os laços. E dada a estreita ligação entre empresa e família acionista, a reputação dos indivíduos está sempre interligada com a da empresa – por isso quer tenha nascido na família ou não, torna-se difícil separar os membros da família e o seu nome do escândalo por trás do negócio. Como resultado, o escândalo pode ser mais profundo, com sucessivas manchetes negativas a aprofundar as feridas e a prolongá-las no tempo.
Em segundo lugar, temos as inevitáveis repercussões financeiras. De facto, os escândalos podem provocar perdas financeiras significativas, tanto a curto como a longo prazo. Ao declínio nas vendas ou no preço das ações (se negociado publicamente), boicotes de clientes e perda de confiança dos investidores juntam-se as consequências legais, como multas, ações judiciais ou acordos, sobrecarregando ainda mais a situação financeira do negócio. E acresce a atitude das instituições financeiras, seguramente menos abertas a oferecer crédito ou financiamento a um negócio envolvido em escândalos.
Um escândalo numa empresa familiar pode também levar a mudanças de gestão dispendiosas. Se estiverem envolvidos membros chave da família, o seu afastamento da empresa pode ser necessário para restaurar a confiança. Isso pode criar um vácuo de liderança, resultando em transições caras, com a necessidade de trazer executivos ou consultores externos para estabilizar as operações. Em casos extremos, os danos causados à empresa podem ser irreparáveis, levando à falência ou liquidação.
Em terceiro lugar, surge a perda da coesão interna no seio do foro acionista. Como as empresas familiares dependem de fortes relações interpessoais e de uma visão partilhada, um escândalo desencadeia quase sempre fraturas sobre a forma de lidar com as consequências ou se um membro da família for o único responsável. Acusações, disputas judiciais e transferência de culpas podem causar cisões no seio da família, potencialmente capazes de levar à dissolução do negócio ou ao desmembramento da própria família.
O custo emocional de um escândalo pode ser grave, especialmente se a família for publicamente envergonhada. Para as gerações mais jovens prestes a assumir o negócio, um escândalo pode ser um fator de desencorajamento de querer assumir papéis de liderança. A desilusão que se segue pode atrapalhar os planos sucessórios, que já são delicados em muitas empresas familiares, e mesmo interromper a transferência geracional da empresa, comprometendo a sua continuidade.
Perda de moral e lealdade dos colaboradores. As empresas familiares caracterizam-se frequentemente por uma forte lealdade por parte dos seus colaboradores, muitos dos quais podem ter trabalhado com a empresa durante anos ou mesmo décadas. O escândalo leva-os perder a confiança na liderança, especialmente se tiver havido lugar a ações antiéticas ou ilegais. A desilusão resultante pode levar à diminuição do moral, à redução da produtividade e à perda de colaboradores, o que pode desestabilizar ainda mais o negócio.
Ao mesmo tempo, a empresa vai enfrentar dificuldades para atrair novos talentos que vão hesitar em juntar-se a uma empresa com uma reputação manchada ou futuro incerto.
Reconstruir a confiança dos colaboradores é um processo lento e muitas vezes requer mudanças significativas na liderança, na cultura e em políticas para garantir responsabilidade e transparência.
B. Escândalos que ficaram na História
A Família Gucci
Embora a família Gucci tenha começado a produzir artigos de couro na Itália no século XV, a famosa marca que hoje nos é tão familiar nasce num celeiro, em Florença, fundada por Guccio Gucci, em 1906. Os seus filhos, Aldo e Rodolfo, assumem mais tarde a empresa imprimindo-lhe um crescimento fortíssimo.
Mas a coesão no seio da família acionista esteve sempre longe de ser a necessária e inúmeros escândalos financeiros e lutas familiares levaram a uma publicidade adversa considerável ao longo dos anos e, no final, à perda de controlo da empresa pela família.
As disputas familiares começam com ações movidas por Paolo Gucci, designer de moda, contra o pai, Aldo, outros parentes e a empresa. Os réus ripostam para impedir uma ação inadmissível de Paolo: lançar uma nova linha de artigos de couro com o nome Gucci. Os processos de Paolo Gucci foram arquivados em 1980, mas nunca mais houve paz na família, com todos os tipos de consequências de que falámos atrás.
O ponto mais alto da onda de escândalos que marca a família é talvez o assassinato do neto do fundador, Maurizio Gucci, em 1995, dois anos depois de ser forçado a abandonar a presidência. A ex-esposa, Patrizia Reggiani, foi condenada em 1998 por organizar o assassinato por uma mistura de ciúmes, dinheiro e ressentimento em relação ao ex-marido.
Divididos pelas amargas lutas pelo controlo de seu império de produção e retalho de alta moda, os membros da família acabam por perder toda a sua participação na Guccio Gucci S.p.A. O Grupo Gucci é hoje propriedade da multinacional francesa Kering, um dos maiores grupos de moda do mundo.
A Família Tanzi
Fundada em 1961 por Calisto Tanzi, a empresa familiar de laticínios Parmalat é uma das maiores empresas de alimentos da Itália e um conglomerado multinacional com 214 subsidiárias em 48 países. Nos anos 80, Tanzi e o filho conduzem investimentos colossais em futebol, partindo da compra do “seu” clube Parma para formar uma constelação de clubes patrocinados e passes de jogadores onde se inclui o Benfica.
Quando o desempenho financeiro da empresa derrapa em 1990, Tanzi e a sua equipa executiva montam um esquema para disfarçar os défices fiscais da Parmalat, através de fraude e conspiração. Nos 13 anos seguintes, os executivos da empresa inflacionam os números de receita relatados, da criação de transações falsas e dupla faturação à ocultação da dívida da Parmalat dos investidores. Só em 2002 é que os analistas financeiros começaram a suspeitar de problemas.
Em resposta às muitas alegações de má gestão financeira, a empresa entra em efeito “bola de neve”, tentando ocultar o seu comportamento através de cada vez mais atividades fraudulentas. Em 2003, o esquema estoira: a Parmalat é declarada falida e entra em colapso em dezembro desse ano.
Pelo seu papel naquele que foi considerado o maior escândalo de falência empresarial da Europa, Calisto Tanzi foi condenado a 18 anos de prisão. Resgatada pelo Grupo Lactalis, o maior conglomerado mundial de lacticínios, a Parmalat reconstrói a sua imagem, refoca a estratégia e mantém hoje a sua escala.
Família Bettencourt
Em 2007, Françoise Bettencourt Meyers, herdeira do império de cosméticos L'Oréal e neta do fundador, Eugène Schueller, abre um processo criminal contra um homem que considerava estar a aproveitar-se da mãe, Liliane Bettencourt, de 84 anos. Meyers afirmou que, durante 25 anos, viu sua mãe esbanjar fundos com o romancista e fotógrafo François-Marie Banier, oferendo-lhe presentes caros num valor superior a US$ 1 bilião. Além disso, Meyers alegou que Banier estava a tentar separar a família Bettencourt, chegando ao ponto de pedir a Liliane Bettencourt que o adotasse.
A guerra abriu o apetite investigador da imprensa sobre Liliane, descobrindo-se então contas não declaradas na Suíça, favores e dinheiro passado a políticos franceses de topo. O folhetim atinge o cume quando se descobre que François Sarkozy recebera um donativo secreto de US$ 150,000 para a sua campanha.
O escândalo, conhecido como Caso Bettencourt, encantou muitos em França durante quase uma década. Acabou quando Banier foi condenado a três anos de prisão. A rixa familiar entre Françoise Bettencourt Meyers e a mãe manteve-se até à morte de Liliane Bettencourt, em 2017. Sarkozy foi condenado a três anos de prisão, mas em 2015 o tribunal cancelou a condenação. Graças à força da sua marca e do seu portefólio, a empresa L'Oréal saiu sempre ilesa de todo o processo.
A Família Koch
Em 1940, Fred Koch Sr. funda a Wood River Oil and Refining Company, o embrião do futuro gigante Koch Industries. Koch Sr. e a esposa, Mary, tiveram quatro filhos, Fred Jr., Charles e os gémeos David e Bill.
Fred Jr. não se interessou pelo negócio, mas Charles vem trabalhar com o pai. Com morte de Fred Sr., em 1967, Charles assume a presidência. Os gémeos David e Bill entram na empresa em 1970 e pouco depois Bill monta um golpe para assumir a liderança, substituindo Charles. Quando Bill é descoberto, Charles demite-o com uma indemnização de US$ 400.000.
Bill pode ter sido excomungado da empresa familiar, mas ainda tinha ações. Em 1983, rebenta uma divisão oficial entre os irmãos, com um regressado Fred Jr. alinhado com Bill para processar Charles e David por dividendos não pagos. Por fim, Charles e David compraram as participações de Fred Jr. e Bill por US$ 400 milhões e US$ 620 milhões, respetivamente, mas a seguir estes irmãos voltam a atacar Charles e David por subavaliação dos valores de compra das ações em... US$ 25 milhões. O ressentimento ditava a ação.
Os irmãos continuaram a lutar pela quantidade de dinheiro que acreditavam ser-lhe devida durante quase duas décadas e estavam tão distantes que nem sequer se falaram no funeral da mãe, em 1990. Apesar do cisma, o crescimento e a valorização da Koch Industries acaba por ser tal que as implicações externas não passaram das revistas sociais.
Tory e Chris Burch
Com uma marca que se havia tornado um enorme sucesso em todo o mundo, a estilista Tory Burch e o ex-marido e cofundador da empresa, Chris Burch, têm dois graves desentendimentos. O primeiro, em 2006, quando se divorciam apenas três anos depois da fundação da empresa; o segundo, já no final de 2012, quando entram num complicado litígio judicial um contra o outro. A empresa já faturava então US$ 800 milhões e ambos tinham participações paritárias.
Chris queria vender a participação para se concentrar na sua nova empresa, a C. Wonder, que havia fundado, e espoleta a guerra alegando "quebra de contrato e interferência na venda das suas ações da empresa". Tory aproveita a disputa legal alegando que a C. Wonder era uma cópia da sua marca.
A disputa acaba por ser resolvida em 2013, com um acordo no qual Chris vende ações na empresa da ex-mulher, mas ainda mantém uma participação de 15%. Tori consegue salvaguardar a empresa e a marca Tori Burch de toda a imprensa negativa causada pela batalha de sócios mantendo-a em crescimento nessa década.
Os Shoen e a sua U-Haul
Em, 1945, o casal L.S. Shoen e Anna Mary Shoen percebem que há um nicho por explorar no mercado de serviços de mudanças nos Estados Unidos e estabelecem a U-Haul como o seu negócio familiar. Em poucos anos, os clientes tinham a opção de alugar uma carrinha ou um reboque unidirecional para transportar as suas mercadorias para qualquer lugar dos Estados Unidos. Em 1955, a empresa expande-se para o Canadá.
No entanto, no início dos anos 80 o casal permite que o filho mais velho, Samuel, lance um novo braço da empresa, para incluir também aluguer de vídeos, jet-skis e pistas de dança. Os irmãos, Joe e Mark, ficam preocupados com esta diversificação, que consideram que se afasta demasiado da essência original do negócio e da marca. Em 1986, preocupado com a possível destruição da empresa se não interviesse, Joe dá um golpe e assume a U-Haul com o apoio de Mark.
Joe estabelece-se com sucesso como CEO, mas isso passa por demitir o pai da sua própria empresa, causando uma profunda fratura no seio da família, que resultou em 25 anos de processos judiciais e litígios.
O fundador L.S. entra num processo de decadência mental tendo na mira o filho Joe como o vilão da família. Entre outros episódios, acusou Joe e Mark de assassinar a cunhada (um violador em liberdade condicional admitiu mais tarde o crime) e em 1999 suicidou-se, despistando-se contra uma árvore... ao volante de um camião da U-Haul.
C. Estratégias de recuperação e mitigação: o que fazer a seguir
Embora os escândalos possam ter efeitos devastadores, as empresas familiares não devem nunca ficar de braços cruzados na defesa da empresa. E vimos nos exemplos apresentados vários casos de escândalos de repercussão global nos quais os protagonistas conseguiram tornar a empresa imune às repercussões que referimos no início.
O primeiro e mais crítico passo na gestão de um escândalo é a transparência. Se o caso se justificar, os membros da família envolvidos devem assumir a responsabilidade pelas suas ações e a empresa deve comunicar abertamente com as partes interessadas. Esta transparência fomenta a confiança e assinala um compromisso para corrigir os erros.
A implementação de reformas de governação é outro passo crucial. Os escândalos revelam frequentemente fragilidades nas estruturas de governação, em especial em certas empresas familiares onde há risco de tomada de decisões informal ou sem supervisão adequada. Estabelecer políticas claras, incluindo códigos de conduta, controlos financeiros e membros de conselho independentes pode prevenir crises futuras e sinalizar às partes interessadas que a empresa está comprometida com um comportamento ético.
Além disso, as empresas familiares podem precisar se envolver em gestão de reputação, o que pode incluir rebranding, campanhas de relações públicas ou até mesmo mudar a liderança para distanciar a empresa dos envolvidos no escândalo. A introdução da gestão externa pode proporcionar um novo começo, injetando profissionalismo e credibilidade no negócio. E em muitos casos, a contratação de um consultor de gestão de crises pode ajudar a empresa a navegar no complexo processo de reconstrução da sua reputação.
Por fim, as famílias devem abordar as dinâmicas internas após um escândalo. Terapia, mediação ou outras estratégias de resolução de conflitos podem ser necessárias para curar relacionamentos e restaurar a unidade dentro da família. Isto é crucial para a saúde a longo prazo tanto da família como da empresa, uma vez que as tensões não resolvidas podem conduzir a novos litígios no futuro.
Os escândalos podem ter consequências de longo alcance para as empresas familiares, afetando desde a sua saúde financeira até às relações pessoais dentro da família. A natureza única destas empresas, em que o pessoal e o profissional estão muitas vezes profundamente interligados, torna-as particularmente vulneráveis a tais crises.
No entanto, embora o impacto de um escândalo possa ser devastador, não é intransponível. Com transparência, governança forte e um compromisso de reconstruir a confiança, as empresas familiares podem recuperar-se e, em alguns casos, emergir ainda mais fortes. Em última análise, a gestão de um escândalo pode definir o legado de uma empresa familiar, tornando-a num momento crucial na história da empresa e definindo um novo rumo para a valorização e crescimento no longo prazo.
Empresário, Gestor e Consultor