
Nem mais um dólar para a Ucrânia de Zelenski enquanto este não se comprometer com a paz – diz Donald Trump, o presidente americano, apenas uns dias depois de uma reunião chocante e desastrosa em direto na Casa Branca entre o presidente ucraniano, o americano, Trump, o vice-presidente americano, JD Vance, e o secretário de Estado, Marco Rubio. Em frente às câmaras, tudo desabou após 40 minutos relativamente pacíficos, com os avisos e preocupações de Zelenski acerca do presidente da Rússia, Vladimir Putin, a serem lidos como ingratidão e ameaças aos Estados Unidos pela dupla Trump-Vance.
Como resultado não foi assinado nenhum acordo de minerais e Trump quer parar os apoios militares. Zelenski não conseguiu adaptar a abordagem a uma Casa Branca que agora não quer hostilizar o líder do país que invadiu a Ucrânia, mas sim negociar com ele. Claro que correu mal.
Isto depois de dia 24 de fevereiro, três anos depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, os Estados Unidos da América votaram pela primeira vez nas Nações Unidas ao lado da Rússia em questões de segurança europeia. Toda a União Europeia, com exceção da Hungria, votou ao lado da Ucrânia, condenando a invasão russa. Momentos preocupantes para a Europa que se sucedem após o discurso chocante de JD Vance na Conferência de Segurança em Munique. Em que disse que o maior inimigo da Europa era interno, e não a Rússia ou a China. Dia 26 de fevereiro, Trump voltou à carga contra a União Europeia, anunciando tarifas de 25% e dizendo que esta foi criada para "lixar" os Estados Unidos, ignorando o facto de os Estados Unidos terem sido desde o início do pós-Segunda Guerra grande promotores da integração europeia. Agora, temos Elon Musk, o coordenador do Departamento da Eficiência Governativa, DOGE, a apelar na rede social X à retirada dos EUA da NATO e da ONU. A relação da América com a Europa e o mundo está num ótimo estado, portanto.
Depois de quase todos os outros líderes da UE e da NATO terem mostrado apoio à Ucrânia depois do desastre da visita à Casa Branca, é altura de desistir do Atlantismo e da aliança com os Estados Unidos? Acho que não. Ainda a podemos salvar, se todos, da América à Hungria, da esquerda à direita, percebemos de vez que para salvar o Ocidente e a sua civilização, e temos de o salvar, temos de salvar a relação entre a América e a Europa.
As afirmações e políticas de Trump e a sua equipa têm enfraquecido a aliança transatlântica, minando o atlantismo até de alguns dos seus maiores adeptos, como o recém-eleito chanceler da Alemanha, Friedrich Merz, do partido democrata-cristão CDU: "Nunca teria pensado que teria de dizer algo assim num programa de televisão, mas, depois das declarações de Donald Trump na semana passada... é evidente que este governo não se preocupa muito com o destino da Europa", disse. E ainda: "A minha prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rapidamente possível para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência dos EUA."
É então claro que não é apenas a relação transatlântica que está em perigo nesta nova era de direitas nacionalistas, mas também a própria crença do que os países e povos de ambas as margens do Atlântico Norte devem trabalhar em conjunto para enfrentar os desafios mundiais, o Atlantismo. Para que tentar salvar esta ideologia? E como? A primeira pergunta é mais fácil de responder do que a segunda. Vamos a isso.
Primeiro, porque o Atlântico é o eixo principal da Civilização Ocidental, a nossa civilização e a que mais contribuiu para o desenvolvimento da humanidade como um todo, civilização criada pela junção das matrizes greco-romana, judaico-cristã e anglo-germânica. O Atlântico, um oceano pouco relevante à escala global até ao século XV, tornou-se graças às viagens dos portugueses, espanhóis, ingleses e outros povos ocidentais, um eixo fundamental de ligação com o resto de mundo, em particular com o Novo Mundo, da América, o mais ocidental de todos os continentes. É onde hoje se situa a mais rica, poderosa, influente e ocidental das nações, os Estados Unidos da América, que hoje com a administração nacionalista de Trump parece ter dúvidas sobre a aliança transatlântica, quando é ela que faz forte o seu país e faz forte o Ocidente.
É curioso como tantas direitas nacionalistas, dos populistas do Partido Republicano nos EUA, à AfD na Alemanha ou a Viktor Órban na Hungria, não percebem que se querem salvar a Civilização Ocidental têm de salvar o europeísmo na Europa e o Atlantismo nos dois lados do oceano. Uma coisa não impede a outra, pois aos Estados Unidos interessa uma Europa forte, tanto a União Europeia como outros aliados. E uma Europa forte também precisa duns Estados Unidos fortes, que trabalhem com ela.
Embora a Rússia faça parte da civilização europeia e tenha muito em comum culturalmente com o Ocidente, é neste momento um inimigo geopolítico, e só deveria deixar de o ser, depois de uma derrota na Ucrânia lhes impor suficientemente humildade para se fazer uma paz justa e duradoura. A paz com a Rússia deve ser feita duma posição de força dos países ocidentais. Mas os ocidentais demoram a criar essa força, sobretudo militarmente. Nos tempos que correm, os países europeus da UE e da NATO têm mesmo de aumentar os orçamentos militares e capacidades defensivas, e terão de fazê-lo em cooperação com os Estados Unidos, pois estes têm as tecnologias mais avançadas de defesa e as maiores indústrias. Neste último ponto, a administração Trump está correta.
Por outro lado, e não parece ser só tática de negociação, a administração Trump parece desvalorizar a importância que a Europa ainda tem para os Estados Unidos. Claro que é bom pressionar a Europa a puxar o seu próprio peso, mas a promoção do bem-estar e segurança dela não deve ser esquecida. Afinal de contas, a grande maioria dos americanos descende dos europeus, a sua cultura descende da europeia, e os europeus têm também muitas capacidades a oferecer aos americanos. Têm mesmo de resolver os diferendos comerciais e geopolíticos e trabalhar em conjunto, e garantir que estão numa posição de força para enfrentar os desafios globais, em particular a ascensão da China, com que os europeus têm sido demasiado ingénuos, e que, dada tremenda diferença civilizacional, de visão sobre o mundo e os direitos humanos não deve nunca ser equacionada como uma alternativa a todos os níveis aos americanos, por mais que estes últimos se mostrem difíceis ou isolacionistas.
Portugal tem uma preocupação particular com a continuidade e força da NATO, pois é o país mais atlântico da Europa. Esperemos então que continue como um promotor das relações transatlânticas e que os seus líderes evitem comentários como o do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a chamar os EUA de antigos aliados, criticando demasiado explicitamente o atual posicionamento norte-americano.
Mas voltemos ao discurso de JD Vance em Munique, uma crítica profunda ao desvalorizar da vontade popular e da liberdade de expressão pelos líderes da União Europeia. E ainda a consideração de que o maior inimigo da Europa é o inimigo interno, presumivelmente as elites globalistas e tecno ou eurocratas que desvalorizam as preocupações dos povos, que pretendem vigiá-los controlá-los e que são elites hipócritas. E desvalorizando os defeitos da Rússia e o perigo que representa.
Muitas das críticas de Vance à Europa são legítimas e baseadas na realidade, na Europa não se protege tanto a liberdade de expressão à nível constitucional como nos EUA, nem os sistemas parlamentares permitem mudanças tão fortes na governação como o sistema presidencialista americano. Mas o vice-presidente dos Estados Unidos, tal como o próprio presidente, e muita da direita nacionalista que por aí anda, tem de perceber que a Rússia não é um bom modelo, mesmo para quem defende valores conservadores, tradicionalistas e mesmo de defesa de homogeneidade étnica, pelo menos europeia. A Rússia é um país bem mais pobre do que quase todos os países ocidentais, com um governo corrupto e autocrático, sem liberdade de expressão, que por mais que tente promover valores tradicionais e saudáveis não consegue evitar ter altas taxas de alcoolismo, de homicídio e suicídio, divórcio e aborto. E que ainda menos consegue promover as taxas de natalidade dos nativos ao ponto de não ser necessária imigração muçulmana em grande escala oriunda da Ásia Central.
A Rússia não é exemplo, a China, com o seu estado autocrático policial sem liberdade de expressão e taxas de fertilidade em queda livre muito menos. O Ocidente, apesar de todos os seus defeitos, continua a ser a melhor civilização para se viver e a melhor civilização para liderar o mundo. Para isso ambos os lados do seu oceano, o Atlântico, têm de trabalhar em conjunto, Europa e América do Norte, e cada vez mais a América Latina, próxima da nossa civilização. E claro os restantes países do mundo ocidental e aliados próximos, como a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão e a Coreia do Sul.
E sim, tem de haver também uma mudança de atitude das elites de ambos os lados do Atlântico, que têm de se esforçar por ouvir mais os povos, sobretudo as suas preocupações com o custo de bens essenciais e da habitação, as desigualdades, a segurança, e as mudanças sociais e demográficas como as que decorrem da imigração e do envelhecimento sem substituição de gerações que levam a um enfraquecer da coesão social. Faz sentido desenvolver um Atlantismo que acolha melhor as preocupações e valores das direitas mais conservadoras, dada a sua crescente popularidade. Depois os partidos de todas as ideologias, assim como os seus eleitores, dos mais à esquerda e progressistas aos mais de direita e conservadores, passando pelos liberais, terão de perceber que sem compromissos e sem soluções pragmáticas testadas e adaptadas a cada situação, às vezes mais à esquerda, às vezes mais à direita, não se resolverá as dificuldades da nossa sociedade.
Quem é muito à esquerda tem de perceber o valor da nossa civilização e cultura, a mais progressista e igualitária de todas, e compreender que com mudanças demasiado rápidas na cultura, impostas de cima, assim como grandes migrações de povos culturalmente muito diferentes, põem em risco todos esses progressos. Os liberais têm de perceber que o culto das liberdades individuais e dos mercados e comércio livres não pode ser absoluto, e sem espírito de comunidade, sem tradições e sentidos de dever mútuo, o próprio sistema económico capitalista e o liberalismo em geral ficam em risco de colapsar. Os mais conservadores e nativistas têm de perceber que já não é possível voltar a 1950, ao século XIX, ou à Idade Média e poucos realmente o querem, é preciso aceitar e acolher bem quem vem por bem, ajudá-los a assimilar e aceitar a diferença, a igualdade entre o homem e a mulher, percebendo que esta abertura à diferença e mentalidade progressista e virada para o futuro são também parte do próprio espírito da Civilização Ocidental. Acima de tudo, as elites e os líderes têm de responder às preocupações e vontades dos povos ocidentais. Trabalhemos então todos juntos para salvar o Ocidente, e dar o melhor exemplo ao resto do mundo.