O som das explosões era hoje constante nas imediações da base, usada pela família do ex-Presidente Bashar al-Assad como seu "aeroporto privado" e pela Força Aérea para acolher o seu serviço de informações militares, uma unidade logística e depósito de munições e também tropas de elite para reprimir os grupos armados de oposição que nos últimos anos desafiavam o regime e que, no passado 08 de dezembro, chegaram finalmente vitoriosos a Damasco, enquanto o ditador sírio fugia para a Rússia.
Logo a partir desse dia, que marcou o fim de décadas da dinastia Assad, a base de Mezzeh foi severamente bombardeada mais do que uma vez pela aviação israelita, somando-se a outros ataques que têm ecoado por toda a capital síria, e os vestígios permanecem no local, onde vários helicópteros militares Gazelle de fabrico francês ficaram destruídos por completo.
Os ataques ainda não cessaram e, ao longo do dia, eram perfeitamente audíveis a uma distância de não menos de 30 quilómetros, na direção do cume nevado do Monte Hermon, próximo da linha desmilitarizada que separa a Síria de Israel e que foi violada nos últimos dias pelas tropas israelitas, alegando atuar na proteção do seu território para dizimar o que resta do antigo Exército sírio.
"[Os israelitas] não querem deixar nenhuma base aérea intacta. Todos os helicópteros e caças foram atingidos. Israel destruiu-os todos", critica Abu Mahmoud al-Daraawi, 28 anos, um militar das Forças para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, HTS), o principal grupo da coligação de oposição que pôs fim a mais de cinco décadas do regime numa operação de menos de duas semanas.
O soldado rebelde, que se encontra junto de um militar uzbeque nas fileiras do HTS a proteger a entrada da base de Mezzeh, descreve uma "situação de caos" na região próxima de Daraa, no sul da Síria, de onde é natural, e junto da zona desmilitarizada, referindo a presença de "grupos civis que estão armados há muito tempo e agora ainda mais".
Os raides israelitas cirúrgicos perfuraram também vários hangares cilíndricos em betão, dissimulados na vegetação seca, e arrasaram o seu interior, incluindo viaturas militares e caixas de munições, além de sistemas de mísseis antiaéreos, num cenário apocalíptico de crateras abertas por bombardeamentos anteriores, velhos caças de combate de produção soviética atingidos ou inutilizados, equipamentos eletrónicos abandonados e cápsulas de projéteis de vários calibres espalhadas pelo chão.
Sobram porém vários hangares de betão intactos que guardam ainda dezenas de caixas, com mais de cem quilos cada, contendo vários modelos de mísseis por disparar, trazendo as respetivas indicações em russo, alemão, francês e inglês, conforme a sua proveniência. Não há ninguém à vista, exceto dois rapazes à procura de baterias esquecidas, enquanto um drone de proveniência desconhecida sobrevoa o local.
Outros hangares, em grandes estruturas metálicas, abrigam helicópteros militares e um civil, aparentemente já incapazes de voar, entre imagens ainda por remover de Bashar al-Assad, na sua versão militar, de uniforme e óculos escuros, e um lema do seu partido, Baas, inscrito a vermelho: "Uma única nação árabe com uma missão eterna".
Das vizinhanças da base aérea, no bairro homónimo de Mezzeh, escuta-se o som permanente de rajadas de armas automáticas, que em muitos casos podem estar relacionadas com festejos da queda do regime, mas também com testes de armas a serem negociadas nas ruas após grandes quantidades de soldados do Exército do regime terem desertado nos últimos dias, misturando-se com o estrondo dos bombardeamentos proveniente da região da zona desmilitarizada.
Segundo a cadeia televisiva Al-Jazeera, desde a queda do regime, Israel já dirigiu cerca de 800 ataques em todo o território sírio e nos arredores da capital, visando depósitos de armas e unidades de defesa aérea, incluindo um violento bombardeamento na última madrugada na zona costeira de Tartus, onde a Rússia desativou na passada semana uma estratégica base naval.
As autoridades israelitas alegam que pretendem evitar que este armamento possa servir no futuro para atacar o seu país, ao mesmo tempo que negam ambições territoriais na Síria, embora tenham acabado de aprovar um plano de ampliação nos Montes Golã ocupados, perto da zona desmilitarizada e do seu atual raio de ação militar no país vizinho.
A força de paz da ONU nesta zona tampão pediu na sexta-feira o fim das atividades militares nesta região, que é ainda próxima da fronteira com o Líbano, onde as forças israelitas estão em guerra há mais de um ano com o grupo xiita Hezbollah, aliado do Irão e do antigo Presidente Assad, apesar do cessar-fogo entre as partes desde 27 de novembro, que, por sua vez, tem sido sucessivamente violado.
No entanto, depois de enfrentar o Exército sírio, enfrentar Israel não está nos planos do militar de Daraa do HTS, destacado para a base de Hezzeh: "A Síria não está preparada para a guerra até que haja organização das instituições públicas e uma resposta às necessidades das pessoas, que agora precisam de tranquilidade. Depois, se Deus quiser, estaremos prontos", comenta o rebelde al-Daraawi, em linha com o seu líder, Abu al-Jolani, que também disse não desejar uma confrontação com o estado israelita.
Na base de Mezzeh, embora os militares presentes do HTS afirmem estar no local para "evitar que a população civil entre e provoque o caos", as instalações já estão vandalizadas e numerosos retratos de Bashar Assad e do seu pai e antecessor, Hafez, rasgados e partidos.
Todos os edifícios da unidade apresentam sinais de abandono à pressa, ficando para trás uniformes, documentos administrativos, objetos pessoais e até carros, com cada metro quadrado revolvido em pilhas de roupas e sapatos, restos de comida, televisores, chaleiras elétricas e telemóveis já sem préstimo, tal como a parada e o seu mastro nu, com a bandeira síria de duas estrelas associada ao período Assad jogada a seus pés.
Dentro do aeródromo militar funcionava ainda uma prisão política que encarcerou Mohamed al-Nakar, 41 anos, preso entre 2017 e 2023 numa cela que diz ter partilhado durante a maioria do tempo com cerca de outros 50 prisioneiros, a que se adicionou um ano e sete meses em solitária.
Esta prisão, que se soma a muitas outras que funcionam como estabelecimentos de detenção, tortura e extermínio, de que o seu exemplo máximo foi Sednaya, nos arredores norte da capital, foi libertada, com cerca de mil prisioneiros no seu interior, segundo o antigo recluso, quando os primeiros soldados do Exército Livre Sírio chegaram a Mezzeh e conquistaram este lugar simbólico associado à repressão do regime.
Hoje, Mohamed al-Nakar procurava um dos seus três primos desaparecidos e cujo último paradeiro indicava as celas de Mezzeh, onde afirma que não era preciso "um grande motivo" para se ser preso durante largos períodos ou até sumir sem rasto. Junto da porta de armas, mais algumas dezenas de pessoas faziam o mesmo, vasculhando em documentos de identificação encontrados no interior da base um sinal de um familiar ausente.
Alaa Halibi, 39, também acorreu à base aérea ajudando nas buscas de um grande contingente de antigos presos políticos em parte incerta e sente-se com sorte de não ter sido um deles, depois de ter apoiado as primeiras revoltas contra o regime no seguimento da Primavera Árabe, em 2011, violentamente reprimida por Bashar al-Assad, que não poupou a periferia da capital a pesados bombardeamentos, arrasando bairros inteiros, com um grande contributo da unidade de Mezzeh.
"O ar ficou mais puro depois de Assad fugir", declara este comerciante, sem mostrar grande preocupação com os tiros e explosões frequentes que não param de se ouvir a partir das posições israelitas próximas do local. Agora, prossegue, "é tempo de dar paz à Síria", e, antes de se pensar sequer em enfrentar Israel, "é preciso limpar o país [da influência] do Irão e do Hezbollah".
As novas autoridades sírias herdam umas forças armadas reduzidas a pouco mais do que nada, a avaliar pelo que resta da base militar de Damasco, cuja pista não serve nenhuma aeronave desde a partida do tirano sírio e a meio caminho do seu traçado de 2.500 metros apenas ficou uma cadeira vazia e um par de botas.
*** Henrique Botequilha (texto) e António Pedro Santos (fotos), da agência Lusa ***
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