O direito à habitação, consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, não poderia ser mais claro: "Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar." E especifica, no seu ponto 3, que "o Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria". A execução deste direito coloca uma responsabilidade direta sobre o Estado, obrigando-o a agir, programar, incentivar, promover, apoiar, estimular, legislar, garantir e resolver tudo o que com ele estiver relacionado. Mas na prática, chegámos aqui… a esta realidade de tal forma distante da garantia constitucionalmente consagrada que leva um povo habitualmente manso, desorganizado e pouco dado a exigências cívicas a sair à rua a exigi-lo – pela segunda vez neste ano.

A verdade é que, ao longo de décadas, o direito à habitação tem sido relegado para segundo plano nas agendas governamentais. Um dos exemplos mais evidentes é o facto de a habitação partilhar, salvo uma ou outra rara exceção, a composição orgânica e orçamental do mesmo ministério que gere as infraestruturas e as grandes obras públicas – como aeroportos, portos, autoestradas, metro de Lisboa e ferrovia. Este arranjo governativo evidencia uma clara falta de prioridade política para um direito que deveria ser tratado e executado como sendo fundamental. Permitimos que o foco do debate das obras públicas dos últimos 50 anos tenha estado hipnotizado pela construção de autoestradas, de um novo aeroporto para Lisboa, de uma linha TGV ou, mais recentemente, pela sobrevivência da TAP. Tudo isto nos custa milhões – de euros e outros tantos em distração e custo-oportunidade.

É irónico pensar que, enquanto milhares de pessoas marcham por condições de habitação dignas, uma parte significativa dos recursos públicos continua a ser canalizada para setores que, embora importantes, não estão sequer consagrados na Constituição. A nossa Lei Fundamental não prevê, por exemplo, um "direito ao transporte aéreo", muito menos o direito ao transporte aéreo numa companhia aérea específica. Em tempos de escassez orçamental e de desafios sociais crescentes, a pergunta é: onde queremos colocar as prioridades do Estado e deste ministério em particular? A construir aeroportos e a brincar às companhias aéreas? Quando milhares de famílias enfrentam dificuldades para garantir um teto sobre as suas cabeças, faz sentido continuar a investir avultados recursos em projetos que não satisfazem necessidades básicas da generalidade da população?

O Orçamento do Estado, no geral, não é infinito, e o orçamento de cada ministério ainda o é menos. Cada euro gasto numa área implica menos recursos para outra. Se realmente quisermos tornar a habitação uma prioridade governativa, é preciso repensar onde o dinheiro público está a ser alocado. E nesse processo, é inevitável reconhecer que alguns gastos considerados "supérfluos" ou de menor impacto social têm de, e devem, ser sacrificados.

Conceder à habitação a atenção que merece não é apenas uma questão de justiça social; é obrigar o Estado a agir em conformidade com a Constituição. Não podemos continuar a secundarizar os direitos fundamentais em prol de projetos megalómanos ou de interesses económicos de curto prazo.

É tempo de exigirmos e de julgarmos as políticas públicas não pelas suas intenções, mas pelos seus resultados práticos. Tudo o resto é paisagem.

Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo