A incoerência não é defeito de carácter, é característica humana. O desfasamento entre ética e praxis não é um problema real (mesmo quando existe a ilusão de coerência).

A pessoa que se irrita com a contradição moral dos outros ("como é que ele defende a justiça social e depois depois tenta fugir ao fisco?") é, muitas vezes, a mesma que nunca pensou que talvez seja estranho estar a comer canja e não ser capaz de fazer mal a uma galinha. A coerência é um conceito tão sobrestimado como o amor verdadeiro. E igualmente enganador.

É verdade que muitas das pessoas que partilham os seus ideais elevados — convictamente ou hipocritamente ou ingenuamente — em redes sociais ou os tatuam em letras góticas no antebraço, podem estar claramente enganadas porque se acham coerentes (a novidade, que não deveria ser novidade nenhuma, é que um estado de coerência perfeita não existe), mas outras estão conscientes de que apenas os acenam de longe, como quem diz: "ainda não estou lá, mas olha que bonito farol eu tatuei no peito".

Há portanto uns incoerentes mais conscientes do que outros: são aqueles que reconhecendo o abismo entre o que dizem e o que são, fazem da incoerência um farol, um caminho. Ninguém exige que o farol salte para a água para salvar náufragos. O farol está ali para brilhar. Serve para orientar.

Por outro lado, optar pela filosofia do "moderadamente boa pessoa", essa simpática mediania que não chateia ninguém e raramente altera a ordem do mundo, não será propriamente virtude. É não desejar ser Gandhi, para contentar-se com a possibilidade mais pragmática de ser um primo afastado de Gandhi que, de vez em quando, separa o lixo.

Ora, há aqui uma diferença crucial entre o que crê ser coerente na aplicação dos seus ideais virtuosos — ou que, pelo contrário, sabe ser uma pessoa irremediavelmente incoerente — e aquele que abdica de certos ideais para não cair nas malhas da contradição. Ter um ideal alto e não o praticar ou praticar actos que o contradizem — pode, especialmente nos casos de maior consciência da própria fragilidade moral — ser sinal de que se apontou a bússola para Norte, ainda que se continue a cair em sarjetas. Mas essa orientação já é meio caminho andado, como defenderia Kant: tentar fazer o bem comum, ainda que não seja de forma plena. E se ainda restarem dúvidas, a receita pascaliana vem em nosso auxílio. Segundo Pascal, é perfeitamente aceitável que um homem sem pernas deseje correr. No quotidiano, nesse palco glorioso da incoerência, há fumadores que advertem os outros dos perigos do tabaco enquanto acendem mais um cigarro. O facto de não se conseguir parar de fumar não diminui o valor da advertência. Este fumador é simplesmente mais uma pessoa sem pernas que deseja correr. O glutão que recita de cor a longa lista dos malefícios do açúcar enquanto devora mais um pastel de nata está certo no seu discurso. São pessoas incoerentes? São. Sobretudo porque são humanas. As outras, que abominam a não contradição, fumam em (quase ou aproximada) coerência entre o que dizem e o que fazem (serão, no entanto, incoerentes noutros assuntos), mas a diferença é que as primeiras têm o discurso certo, enquanto o fumador que se reconhece impotente para acabar com o vício, achando-se assim perfeitamente coerente, nem isso. Apenas optou pelo silêncio ou pelo cinismo.

No final, é preferível um hipócrita aspiracional — que talvez um dia enverede no sentido do seu bom discurso — do que o coerente sentado no sofá do pessimismo, não fazendo mais do que apontar a sua bílis aos que vão tentando, mal ou bem, fazer o seu caminho.

Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico