
Tal como se editam fotografias, editam-se memórias. A vida tem de parecer bem, tem de ser uma narrativa convincente, como um filme. Editar não é enganar por enganar, é melhorar a experiência até que esta possa ter valor universal. Há um sentido artístico e estético nesta edição (além de funcional, como lidar com traumas, por exemplo, mas também é importante lembrar que os eventos passados são constantemente reinterpretados à luz do conhecimento presente, e algo que nos pareceu bom a certa altura poderá depois ser considerado mau ou vice-versa. A plasticidade da memória é essencial para a vida e para o modo como agimos: poderá paralisar-nos através do medo da repetição ou impulsionar-nos através da coragem de mudar. Mas aqui, quero focar-me na expressão, no modo como a beleza ou o sentido de intriga — ou narrativa — se mostra fundamental no nosso comportamento e como a arte está sempre presente no quotidiano: decorar — num sentido estético, ou seja, adornar, mas o jogo de palavras funciona — e redecorar a memória é um processo artístico). É contar a história com banda sonora. Do mesmo modo que se usam determinadas roupas ou maquilhagem, determinados penteados e perfumes. Não é um logro per se, é uma extensão estética, tal como são uma extensão estética — porque a Natureza se preocupa com isto mais do que imaginamos — as pétalas das flores, que chamam os insectos (cegos ao verde, que para eles é descolorado, e é por isso que as pétalas não são verdes. Já viram flores verdes? Existem, mas são mais raras e dependem de outro tipo de polinização — pássaros ou morcegos, por exemplo, ou porque têm tonalidades que nós não vemos para além do verde ou porque isso lhes serve de camuflagem ou defesa) que acenam, que assobiam, que vestem o seu pólen de modo apetecível à polinização: pétalas são lingerie. Não é uma mentira, é um tempero. Qualquer pessoa quer ter memórias cativantes, contáveis, que possam sair à rua e impressionar quem passa, memórias bem vestidas, com um andar gingão. As memórias que tropeçam não são as mais sedutoras, é preciso que alguém as ampare para que não aconteçam rupturas de ligamentos.
É necessário Homero para relatar a guerra de Tróia e o regresso de Ulisses a casa. Sem Homero, a recordação da guerra pode ser apenas um monte de factos sem interesse, sem sentido. A poesia lírica era acompanhada de lira, daí o seu nome. Narrar com banda sonora. A arte é isto mesmo: tornar interessante o mundo, elevá-lo da banalidade e da confusão à espessura da importância. Nos antípodas disto estão as notícias falsas, bem como as mentiras e as intrigas. Mas não é disto que quero falar, mas do modo como o cérebro é um editor ou realizador: a arte faz parte de quem somos. Quando nos definimos estamos a criar. Qualquer história narrada ao jantar é um objecto artístico.
Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico