É quase certo que a política de "tarifas recíprocas" levada a cabo por Donald Trump vise deliberadamente desencadear um processo de inflação controlada. A inflação controlada criará o ambiente certo para pôr em prática o plano central de Donald Trump: redistribuição regressiva (dos mais pobres para os mais ricos) à escala mundial.
É possível acreditar que Donald Trump e o seu batalhão de conselheiros não previssem a inflação como negativa? Sim, mas apenas se a considerarem como elemento estratégico para atingir um objetivo maior, como parece ser o caso.
A dimensão ideológica é crucial para compreender Trump e aqueles que o acompanham na administração norte-americana. Na visão de mundo associada ao "trumpismo" e a certas vertentes do neoliberalismo meritocrático, a desigualdade não é um problema, mas sim um reflexo do mérito. Quem ganha mais, teoricamente, produz mais valor, e portanto merece mais. Assim, a redistribuição "de baixo para cima" não é injusta nessa perspetiva. É vista como uma correção de distorções "injustas" que favoreciam os menos eficientes. Neste contexto, a política económica funciona como um instrumento de recompensa para os "vencedores do mercado". É este o mundo de Donald Trump.
Também com pertinência para compreender as últimas decisões do presidente americano, importa realçar que no seu “mundo” a noção de longo prazo pesa muito pouco nas decisões a tomar. A sua posição face às alterações climáticas é disso a maior evidência. No "trumpismo" é o imediato que conta.
Preocupado apenas com os resultados no curto prazo, Donald Trump pretende criar um cenário global com inflação controlada, ou pelo menos induzida de forma estratégica, como instrumento para redistribuir riqueza de forma regressiva, ou seja, dos mais pobres para os mais ricos.
Isto pode ocorrer de várias formas. As empresas com maior poder de mercado conseguem não só repassar para o consumidor final os custos acrescidos, mas também lucrar com a instabilidade e a escassez relativa, especulando. A especulação e a concentração de capital tornam-se mais lucrativas em contextos inflacionários, desde que se tenha capital para investir. A desvalorização dos salários reais também amplia a desigualdade e robustece quem detém ativos financeiros ou produtivos.
O surto inflacionário da União Europeia nos últimos anos oferece-nos um vislumbre do que pode acontecer nos EUA. Durante a crise inflacionária com início em 2022, alguns setores europeus saíram como grandes vencedores, entre os quais: a banca, a energia e o retalho alimentar.
Nos EUA, estes setores estarão já posicionados para tirar partido da inflação gerada pelas tarifas de Trump. A banca americana poderá aumentar as taxas de juro e expandir as suas margens de lucro. As empresas de energia poderão capitalizar numa estrutura de mercado menos concorrencial. Os gigantes do retalho ajustarão os preços para absorver o impacto dos novos custos de importação, mas com condições para especularem, alargando as margens de lucro.
A ideia de uma inflação global "controlada" pela administração Trump pode parecer exagerada, mas a influência dos EUA é tal que as suas políticas comerciais e monetárias têm capacidade para gerar efeitos sistémicos à escala global.
A tese de uma intenção ideológica embutida nas políticas comerciais de Trump para reconfigurar a estrutura redistributiva da economia global e beneficiar os que acumulam já mais riqueza e poder de mercado, embora não seja formalmente assumida, parece ser a mais plausível. Pelo menos, a dimensão ideológica associada a Donald Trump e as consequências práticas das “tarifas recíprocas” apontam nesse sentido.
João Rodrigues dos Santos, Professor Associado e Coordenador da área de Economia e Gestão da Universidade Europeia