À semelhança das leis e dos costumes, as instituições não são nem podem ser fins em si mesmas. São, sim, e revestindo-se de contornos diferentes, instrumentos que visam assegurar a paz e a liberdade, a ordem e a justiça, a propriedade e a prosperidade da forma mais duradoura possível. Existem para garantir, independentemente de épocas e contextos, a continuidade das regras escritas e dos compromissos tácitos em que se ancoram as sociedades. São a corrente de transmissão entre o que nos precedeu e o que nos sucederá. São um contrato firmado entre os mortos e os não nascidos. São, como escreveu Roger Scruton a propósito da monarquia britânica, “a voz da história”.
A par das leis e dos costumes, são as instituições democráticas que protegem as comunidades da convulsão e da cisão. São os rituais próprios do institucionalismo que garantem a sobrevivência de valores comuns à pressão permanente da iconoclastia revolucionária. Todavia, se desrespeitadas por quem circunstancialmente as dirige ou entregues à obsolescência por quem negligencia a sua raison d’être, as instituições veem a sua autoridade e o seu prestígio corroídos. Perdendo-os e, por conseguinte, destruindo o seu amparo popular, colapsam.
Ao longo dos últimos anos, nas chamadas democracias liberais, temos assistido à erosão contínua das instituições em resultado de condutas impróprias de gente que perdeu o contacto com a realidade ou de tendências e acontecimentos externos que têm vindo a fazer ruir uma certa ortodoxia necessária à preservação dos elos comunitários.
A própria evolução do capitalismo, cada vez menos assente na propriedade clássica, em bens tangíveis, suscetíveis de admiração ou desejo, criou a perceção de que as fileiras dos excluídos têm engrossado. Ultrapassadas pela volatilidade tecnológica e ressentidas com as inalcançáveis abstrações financeiras de um modelo sem cara e sem alma, em que o capital não tem pátria, essas pessoas viram-se para quem lhes promete que o Ocidente voltará a ser a terra do leite e do mel, contra um bode expiatório (qualquer um que sirva o propósito retórico do momento) facilmente identificável e sacrificável. Daí à tentação sediciosa é um passo.
Em simultâneo, e paralelamente à individualização excessiva das causas e à coletivização absurda das culpas, a turba dos teclados tem contribuído para uma metamorfose no Estado de Direito. Impulsionado por algoritmos imperscrutáveis e transferido para as colunas de opinião de jornais ou espaços de comentário televisivos, o fanatismo, de esquerda e direita, acabou por ser absorvido pelos próprios órgãos de soberania. E, por irónico que pareça, muitos dos responsáveis pela promoção de irresponsáveis apontam agora responsabilidades a terceiros: ao homem branco heterossexual, aos jovens que outrora catalogaram como a geração mais qualificada de sempre, a Musk e a Zuckerberg, ao TikTok, a tudo isto ao mesmo tempo ou ao diabo que os carregue, desde que a tolice os empanturre de “likes” e partilhas.
Ainda que não acreditem em grande coisa, além deles próprios, e embora sejam produtos da bolha que prometem rebentar, graças à acrimónia dos jograis que nos impingem nos noticiários de hora a hora, figuras menores ou de quem nada sabemos arvoram-se em Alexandres, Césares ou Napoleões, mandatados sabe-se lá por quem para expiar os pecados pátrios e cobrir de ouro e glória até o mais ocioso dos indivíduos.
Em todo o caso, a alternativa ao logro dos homens providenciais e das medidas salvíficas não reside na inconsequência das cartas e dos manifestos da meia dúzia de gatos pingados do costume nem na sinalização de virtude através de publicações de Instagram intercaladas com stories sobre gatinhos (estes reais) e refeições em restaurantes da moda. Muito menos estará na judicialização do debate político – que culmina sempre em ensaios de vigilância do pensamento – nem que as ideias trazidas à colação sejam abjetas e contrárias a direitos, liberdades e garantias básicos.
A tirania de uns poucos não pode ser substituída pelo totalitarismo de outros (mesmo que muitos). Perante o caos das ruas, físicas ou digitais, o caminho é o regresso aos rituais da democracia representativa, à restituição da reputação das instituições, à elevação das condutas, ao cuidado com a linguagem e à valorização da dimensão simbólica do que resiste ao imediatismo e vence a efemeridade.
Nenhuma destas condições é compatível com tentativas de resolução dos problemas da nação em calções-de-banho, nem com desabafos pueris sobre coabitações das quais se sente saudades, nem com “jeitinhos” a familiares no acesso a serviços públicos, nem com conferências de imprensa em prime-time para que governantes se pendurem nos resultados de operações policiais, nem com desproporção no uso da autoridade e da violência por parte de quem tem a incumbência constitucional de defender a legalidade democrática e a segurança dos cidadãos, nem com decretos natalícios feitos à medida para o recrutamento de altos dirigentes para o Estado, nem com episódios de pancadaria em ministérios, nem com consentimentos via WhatsApp de indemnizações milionárias pagas por todos nós, nem com campanhas orquestradas contra o sistema judiciário, nem com tabloidização da investigação criminal, nem com a redução das complexidades da política externa a 280 caracteres, nem com coerção de líderes partidários em debates ou de membros do governo no seu local de trabalho, nem com o recurso aos meios e ao palco das Forças Armadas, dos reguladores ou dos sindicatos para a prossecução de agendas pessoais, nem com a dessacralização de datas maiores da nossa História para provocar incidentes polarizadores, nem com a boçalidade verbal e cénica no exercício de funções públicas, nem com injustificáveis cedências às corporações ruidosas e aos profissionais do protesto, nem com temores reverenciais da opinião publicada.
O sentido de Estado, praticado e não proclamado, é um bem escasso. Dele dependerá a proteção do compromisso. Não no sentido de capitulação individual à vontade maioritária, mas de adesão voluntária e contínua às normas aplicáveis a qualquer elemento de uma comunidade. É através das instituições, por mais imperfeitas que sejam, que os compromissos se tornam (con)fiáveis e encontram abrigo no apoio popular. Liquidando-as, sobra-nos o amoralismo, a anarquia e o caos. Embora os tempos reclamem fúria e exijam força, respondamos com temperança e brandura. Voltemos às instituições. Reergamo-las. Reformemos o que tem de ser reformado, mas preservemo-las dos seus detratores. Cuidemos delas. Talvez seja esse o mais singelo, mas também o mais revolucionário dos atos.
Ex-jornalista e especialista em comunicação