É da natureza humana: perante a escassez de causas verdadeiramente mobilizadoras, a inexistência de líderes inspiradores e a falta de personalidades a quem reconheçam um módico de autoridade, as pessoas tendem a virar-se para políticos que lhes deem respostas rápidas e ofereçam remédios o mais palatáveis possível.

Indiferentes ao pensamento único autorizado e a discursos herméticos, cansadas dos tacticismos de figuras menores que só empolgam quem há muito não tem contacto com o quotidiano do cidadão comum, indignadas com os arranjos forjados à mesa por e para elites desacreditadas, e sem pachorra para as pescadinhas de rabo na boca dos casos de sucesso servidos pela comunicação social que só emergiram como casos de sucesso  por serem homologados por essa mesma comunicação social, as massas procuram, acima de tudo, quem economize nos sermões e resolva o que parece irresolúvel.

Em 2019, contra grande parte da opinião publicada, na Europa continental e para lá do Canal da Mancha, Boris Johnson recuperou a maioria da Câmara dos Comuns para o Partido Conservador tendo como bandeira de campanha arrumar de vez uma pesada pendência, o brexit, que permanecia num insustentável impasse. Com ou sem acordo que viesse a regular a futura relação entre o Reino Unido e a União Europeia, foi claro e adotou o célebre, ainda que controverso, “Let’s get Brexit done”, que valeu aos tories a maior vitória desde Margaret Thatcher. Estabeleceu um ponto de chegada, indicou um caminho possível e cumpriu. O resto é o resto.

A esse propósito, mas não só, tenho-me lembrado de um episódio d’Os Simpsons, com mais de duas décadas, em que o pai da família mais popular dos EUA, o negligente Homer, depois de uma altercação com os trabalhadores da recolha de lixo, decidiu candidatar-se a responsável pelo saneamento de Springfield, prometendo aos cidadãos que os homens do lixo fariam tudo o que eles não quisessem fazer (com uma paródia musical, The Garbage Man, que está disponível no Youtube). Entre décadas de entrega ao serviço público do comissário incumbente e as propostas delirantes de Homer, os eleitores enveredaram pela segunda opção. O aventureirismo pueril derrotava a competência certificada. O despesismo imprudente de um néscio prevalecia sobre franqueza áspera de um frugal.

Resultado da alucinação coletiva? O orçamento anual do departamento foi delapidado num mês, os funcionários da recolha de lixo ficaram privados sine die dos respetivos ordenados e, para afastar a espada que tinha sobre a cabeça, Homer tornou a periferia de Springfield num aterro gigante onde um sem-número de cidades americanas depositava o seu lixo a troco de pagamentos chorudos.

A caricatura serve também para o Portugal de 2024. Aquele em que, de tão habituados a ser tomados por crianças, sobretudo durante a joint-venture Marcelo & Costa, os adultos esqueceram que a vida implica escolhas - nem sempre fáceis - e que o exercício de funções públicas e a governação pressupõem a definição de prioridades.

A condução política de um Estado, ao contrário do que PS e PSD (ora alternadamente, ora em conjunto) nos têm feito concluir, deve traduzir uma visão de país - não cedências permanentes a grupos de pressão, a lobbies imperscrutáveis, a corporações ruidosas e muito menos a vândalos orquestrados por forças avessas ao normal funcionamento do Estado de Direito. Por uma só razão: não há dinheiro para acudir a tantas lutas nem para pôr termo a incessantes reivindicações.

Nos últimos tempos, e sem equiparar a gravidade dos atos e das omissões, vimos polícias cercar o espaço onde dois candidatos a primeiro-ministro debatiam, procurando coagir o poder político. Condescendemos com boicotes recorrentes (não raras vezes, vá-se lá saber porquê, às sextas-feiras) à educação, perpetrados por quem devia ter um compromisso maior com a aprendizagem das nossas crianças e jovens do que com filiações partidárias ou sindicais. Assistimos, impávidos e serenos, ao incumprimento reiterado de serviços mínimos nas greves no setor dos transportes, prejudicando quem menos tem e quem menos pode. Testemunhámos a não imposição de serviços mínimos em tempo útil na paralisação de um serviço de emergência médica, tendo essa situação redundado em mortes.

Como corolário dos episódios pouco edificantes, em que a justeza dos fins foi dinamitada pela irrazoabilidade dos meios, observámos bombeiros sapadores a sitiar a sede do governo, usando tochas e petardos, ao melhor estilo das inomináveis claques da bola. Ao mesmo tempo, ouvimos partidos ditos de direita fazer a apologia do direito à greve nas forças policiais, uma contradição insanável para qualquer organização que se arrogue defensora da lei e da ordem. E, pior ainda, uma ministra da Administração Interna que, aos papéis, até admite discutir tamanho absurdo.

Enquanto o país político e o país mediático fingem que nada se passa, nada se move e nada se transforma, entretendo-se e enredando-se em sondagens, cenários e futurologia de algibeira para a qual ninguém tem paciência e procurando, com inatacável zelo e inigualável criatividade, quem não se apoquente demasiado com a degradação institucional e social a que temos sido votados, há quem esteja disponível para algo estruturalmente diferente, tendo a mudança o epicentro no Palácio de Belém, com todos os efeitos que isso poderá ter no nosso regime.

Por mim, antecipo, bastaria alguém que nos devolvesse a maioridade. Alguém que não prescinda da exigência que é devida a gente capaz e recuse cobrir-nos de comiseração que se dispensa, sim, aos desvalidos. Alguém parcimonioso no uso do verbo, mas não na franqueza; que pondere na decisão, mas não seja tíbio na ação. Que, mais do que a vacuidade dos afetos, tenha um desígnio nacional que sobreviva às manchetes das sextas-feiras. Que seja feliz na relação com outros órgãos de soberania, mas que tenha razões atendíveis para isso, poupando-nos às traquinices características da primária e às intrigas próprias do secundário. Que, mais do que um fotógrafo de misérias presentes, seja um pintor de ambições inimagináveis e um cultor de prosperidade futura. Alguém que, sem dizer que “colinho dá a mãe em casa”, não tema recordar-nos daquilo que somos: adultos.

P.S.: Em sentido contrário ao da doxa vigente, que encontra ódio em todos os discursos que rompam com o pensamento único, sou partidário de que até as ideias mais abjetas podem ser defendidas no espaço público. No entanto, dispenso que os 2,85€ (a que acresce o valor do IVA) que pago de Contribuição Audiovisual sirvam para custear as “ideias” veiculadas por comentadoras que lamentam muito mais que um assassino estrague a sua vida ao ir para a prisão do que a morte de outro ser humano, vítima do primeiro, por ser um afamado empresário. Refiro-me àquela advogada para quem os talibãs, à semelhança da Real Confraria da Matança do Porco, são merecedores de um segundo olhar e para quem as FP-25 são equiparáveis às associações carnavalescas de Torres Vedras. Enfim, uma pessoa de causas.