Tens-me invadido os pensamentos e entrado pelos sonhos com o ímpeto insolente com que irrompias pela Sala Lisboa (a original e a segunda, que batizaste como "a verdadeira"). Como se mais nada contasse até que chegasses. Como se todos fôssemos personagens menores no grandioso espetáculo de que eras protagonista e que nos oferecias todos os dias a troco de nada. Como se, nas poucas vezes em que nos antecipávamos a ti – raríssimas, que não eras homem de demoras –, as manhãs fossem irremediavelmente cinzentas e as conversas incorrigivelmente frias.

Tinhas razão: havia um a.R. (antes de Roby) e um d.R. (depois de Roby) quotidiano. Tu eras o pós-silêncio, o pós-quietude, o pós-letargia, o pós-previsibilidade, o pós-aborrecimento. Eras uma espécie de mulher cubana, como dizia o teu admirado Hemingway, de tanto sol e tanto calor que te brotavam dos olhos. Pois é, meu bom dândi, eras um fascinante desafio às convenções. O antídoto para uma certa forma muito portuguesinha e minifundiária de encarar a vida e o mundo. Uma provocação aos demais, aos pobrezinhos – expressão tão tua, que democratizaste e tornaste nossa –, os quais brindavas sempre que te parecesse oportuno com um tão irritante quanto inócuo "Cala a boca!" Hoje, percebo. "Cala a boca!" não era reflexo de bravata, era a súplica de um homem com pressa, sem paciência para reflexões vazias ou discussões estéreis. Havia um universo inteiro para apreciar e os dias sumiam-se sem que nos apercebêssemos.

Por que razão te perderias com frivolidades? Por que raio haverias de me ouvir discorrer sobre a tropa? Logo a mim, mimado, caprichoso, imberbe e, por tudo isso, detrator do serviço militar obrigatório? Por que carga de água haverias de dar conversa a um urbanozinho tomado por certezas antitouradas? Tu, esteta exótico, arrumavas-me com um derrote: "Já alguma vez foste a uma corrida de touros? Aquilo é lindo." Por que diabos admitirias discutir o estado do jornalismo, em relação ao qual eu, velho cético e desbiografado, manifestava uma insanável descrença, quando tu, Prémio Gazeta, repórter de mão-cheia aquém e além-fronteiras, ias olhando para o que outros jovens como tu iam produzindo e tinhas o condão de ficar feliz?

Afinal, é disso – só disso – que se trata: felicidade. E da liberdade que lhe está subjacente, sem concessões e sem temores, mas através da renúncia a ódios viscerais e do reencontro com as nossas paixões. Como a tua pela arqueologia, disciplina da qual importaste o método para a vida, escavando sempre mais na procura do bom e do belo no outro. Eras viciado no encanto da surpresa. Como se a cada descoberta, de uma palavra, de um movimento, de um ato, de um teto, de um cais, de um aeroporto, de um livro, de um filme, de um disco, de um passatempo ou de uma gargalhada, estivesses a desafiar a finitude. Que não haja dúvidas, tu eras o riso no sopé da cruz, tal como titulou o Screech.

Caramba, Roby, estes dias sem o inventor da tosta mista, que por mera casualidade também terá sido o maior remador português, têm cheirado e sabido a monotonia. Inconscientemente, tenho procurado por ti num podcast chamado "Histórias de Lisboa". O Miguel Franco de Andrade e os seus convidados contam-nas com mestria, só que tu, personificação do Lisboa - Livro de Bordo do José Cardoso Pires, far-me-ias vivê-las como se também tivesses pisado o Rossio do hipódromo romano, tivesses calcorreado o Mocambo que se fez Madragoa e tivesses fintado a fatalidade do terramoto de 1755, a pé, a nado ou de qualquer outra forma, que os tipos como tu não se escondem, mas também não se deixam apanhar.

Até no inverno da existência, testaste o meu ateísmo, seu herege. O propósito desta vida e os arrependimentos que, creem muitos, carregamos para as seguintes: no caso, o que não te disse ou tu não ouviste e o que te não disse ou tu, mais provavelmente, não quiseste ouvir. No entanto, tudo isso são mentiras suaves em que nos enredamos para não ver o óbvio: o arrependimento e todos os sentimentos que julgamos deixar suspensos são luxos de quem presume que vai voltar a viver ou de quem sempre soube que a vida nunca esteve verdadeiramente ao seu alcance.

O Houellebecq tinha razão: são tantas essas pessoas, demasiadas, e pouco terão a lamentar. A tua situação é distinta, Nuno Roby Amorim. Para lá da raiva e da dor por já não poder testemunhar aquele ronco de enfado que farias perante a enésima elegia que te dedicam, há algo mais tremendo e devastador: a alegria que me deixas. A alegria que nos deixas. Justamente por isso, nós, pobrezinhos, estamos agora tão sós a vivê-la sem ti.

Ex-jornalista e especialista em comunicação