A propósito do drama que as alterações climáticas representam, ouvi recentemente, num podcast interessantíssimo, uma recomendação sobre "pequenas alterações e adaptações (...) que ajudam muito", sendo a principal a já inevitável "comer menos carne". Embora misturando muita coisa sob o conceito de "carne", até aqui, nada de novo.

O que me prendeu mais a atenção foram os argumentos seguintes, porque representam duas "certezas" tão profusamente repetidas quanto questionáveis: a pegada ambiental "enorme, absurda" da carne e o "espaço do planeta" que ocupamos "a produzir cereais para dar às vacas, para depois comermos as vacas; podíamos só comer os cereais, já ocupávamos muito menos espaço".

Para início de conversa, a partir da informação disponível, é relativamente inegável que a nossa saúde poderia beneficiar de uma redução, em média, do consumo de carne, embora a média seja, neste tipo de análises, um indicador arriscado, considerando a variabilidade no consumo de carne, nomeadamente em função do rendimento disponível. Adicionalmente, aparenta haver evidência que as carnes produzidas de formas ditas sustentáveis, ainda assim, emitirão mais que alternativas baseadas em plantas. Não se trata de negar evidências, mas de tentar lê-las de forma mais completa.

Quanto à pegada ambiental "enorme, absurda", do ponto de vista do carbono, vemos[1] que, do total de emissões de gases com efeito de estufa no mundo, em 2021, a agricultura, onde se inclui a produção animal, representava 11,6%, se considerado isoladamente, e 14,3%, se considerarmos o uso do solo e as florestas (LULUCF[2]; este agregado inclui também as emissões dos fogos florestais), num quadro em que as emissões relacionadas com energia são responsáveis por 41,8%, os transportes por 15,5% e a manufatura e construção por 12,6% do total.

Segundo a FAO[3], as emissões oriundas de toda a produção animal (e não apenas das vacas) no conjunto das emissões da agricultura rondarão os 65%, o que põe o valor das emissões (incluindo LULUCF) em 9,3%, valor pouco compatível com a classificação de enorme ou absurda.

Deixando o carbono e passando à água, a outra entidade normalmente usada para demonizar a produção de carne, importa estabelecer um ponto de partida: a produção animal, assim como toda a agricultura, não "gasta" água: usa água, integrando parte nos produtos e restituindo a restante à atmosfera ou aos aquíferos.

Focando-nos nas "vacas" ou, se preferirmos, nos ruminantes em geral e descendo o nível de análise para Portugal, em que uma parte maioritária do ciclo produtivo se passa em pastagens de sequeiro, veremos que a água da chuva que nelas cair, cairá, haja ou não animais nessas pastagens, que terão, assim, uma pegada de água nula.

Continuando nos ruminantes, há que reconhecer que a maioria dos animais destinados a abate não são engordados apenas a partir da erva da pastagem, sendo-lhes fornecidos alimentos ("rações") que, no entanto e ao contrário do que é muitas vezes referido, são maioritariamente fabricados com subprodutos ou refugos de cereais, proteaginosas e outras culturas cujo principal destino foi a alimentação humana. Esta nuance permite-nos passar à questão dos cereais que produzimos "para dar às vacas" e ao espaço por eles ocupado.

Olhando para a informação disponível doutra perspetiva, vemos[4] que o agregado produção de alimentos, que engloba a produção animal e vegetal, mas também a aquacultura, as pescas e as emissões da cadeia de abastecimento (processamento, transporte, embalagem, etc.) é responsável por 26% das emissões globais. Destes 26%, apenas 6% (ou seja 1,6% das emissões totais) são devidas a culturas feitas especificamente para alimentação animal, valor que poderemos considerar relativamente modesto.

Esta questão leva-nos a outra, eventualmente mais relevante: muitos dos animais utilizados para produção de carne, particularmente os ruminantes, têm na pastagem a sua principal fonte alimentar. Sabemos também que uma proporção significativa da área de pastagens tem limitações severas (solo, relevo, etc.) para outras ocupações culturais, pelo que a expansão das culturas para alimentação humana para estas áreas resultaria em danos ambientais significativos.

Paralelamente, uma redução no número de animais deixaria à natureza a função de processar a biomassa que essas áreas continuariam a produzir, agora não consumida por animais domésticos. O efeito mais provável seria o aumento das populações de animais selvagens com capacidade para utilizar aquela biomassa, ou seja, de ruminantes que, à semelhança dos domésticos, também emitem metano. Aquilo que os ruminantes selvagens não consumissem seria, de tempos a tempos, consumido pelo fogo, com danos ambientais significativos e, provavelmente, num jogo de soma nula.

Quero com isto dizer que os ruminantes em pastoreio, onde se incluem "as vacas", são mediadores numa função relevante, que é incluírem no âmbito da alimentação humana áreas que, de outra forma, não teriam capacidade de gerar produtos diretamente consumíveis por nós. Por outro lado, a redução drástica deste tipo de aproveitamento teria, muito provavelmente, um efeito residual nas emissões.

Não quero, contudo, com isto dizer que a nossa pecuária não necessita ser adequada. Necessita e muito. Essa será outra questão, que deverá ser abordada com uma noção clara e integral da realidade e não com remendos e mezinhas que, inevitavelmente, deixarão o problema por resolver. Ainda não há soluções simples para problemas complexos.

Engenheiro Agrónomo e Agricultor

[1] Hannah Ritchie, Pablo Rosado e Max Roser (2020) - “Breakdown of carbon dioxide, methane and nitrous oxide emissions by sector” Publicado online em OurWorldinData.org. Obtido em: 'https://ourworldindata.org/emissions-by-sector' [Online Resource]

[2] LULUCF: Land Use, Land use Change and Forestry.

[3] Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). 2020. Emissions due to agriculture. Global, regional and country trends 2000–2018. FAOSTAT Analytical Brief Series, N. º 18. Roma.

[4] Hannah Ritchie, Pablo Rosado e Max Roser (2022) - “Environmental Impacts of Food Production” Publicado online em OurWorldinData.org. Obtido em: 'https://ourworldindata.org/environmental-impacts-of-food'