Estamos a poucos meses de iniciar o último de dez penosos anos de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República. À mais elevada função que a pátria pode ter reservada para os seus, Marcelo chegou com a aura de quem se movia acima do plebeísmo partidário e das impiedades das convicções ideológicas, sobretudo porque tinha como missão “descrispar” dois hemisférios cindidos na sequência das legislativas de 2015.

Paradoxalmente, o homem que vinha para dessacralizar a instituição presidencial, expurgá-la dos vícios do antecessor (conhecido por apenas dar cavaco a um núcleo restrito de confidentes) e eliminar a intermediação entre Deus e os seus fiéis transformou-se num candidato-sol.

Sozinho, munido de superficiais afetos e de smartphone no coldre, elevou-se a guia espiritual de devotos ávidos por selfies e um módico de atenção e ergueu-se como pastor de uma igreja em profunda letargia. Em poucos meses, o iconoclasta não resistiu à propensão natural para ser ícone.

De lá para cá, em sucessivos episódios, Marcelo banalizou as funções e desprestigiou o cargo que os portugueses lhe confiaram. Conseguiu gerir pior os parcos silêncios do que o vórtice das palavras. Não raras vezes, incapaz de temperar o afã de ser a estrela pela qual jornalistas e comentadores suspiravam, ridicularizou-se. Ridicularizando-nos consigo.

Em termos práticos, segurou Mário Centeno quando o então ministro das Finanças, explícita ou tacitamente, autorizou o que não podia ter autorizado à administração da CGD. Afirmou que foi feito tudo o que podia ter sido feito quando o calor do chão de Pedrógão Grande ainda derretia as solas dos sapatos – e depois foi o que se viu e soube-se o que se soube. Embrulhou-se com o assalto ao paiol de Tancos. Fez oposição à oposição e alimentou um indecoroso romance com o primeiro-ministro. E, conluiado com António Costa, afastou uma procuradora-geral da República que foi um oásis de respeitabilidade pessoal e institucional, fingindo hoje nada ter a ver com a nomeação da senhora que se seguiu.

Sem a solenidade que caracterizava as aparições de Sampaio ou Cavaco e desprovido da autoridade que é reconhecida a Eanes, Marcelo tentou, sem sucesso, ser Soares. Procurou, em vão, uma reeleição com números históricos. E, desde 2021, raras foram as ocasiões em que esteve à altura da exigência.

Falou mais vezes em dissoluções do que em soluções. Promoveu mais o consenso vazio do que o compromisso devidamente delimitado. Ameaçou recorrer à “bomba atómica” com a puerilidade com que uma criança se diverte com estalinhos de Carnaval. Foi reduzido à insignificância de um espectador pelo Governo da dezena e meia de demissões. Viu-se vergado por Costa quando a crise TAP/SIS fez balançar, mas não cair, João Galamba. De permeio, e já com o PS caído em desgraça, chamuscou-se com o novelesco caso das gémeas luso-brasileiras e deu aos que pretendem instaurar uma nova República o alvo que lhes estava a faltar.

Sejamos claros: em Janeiro de 2026, os portugueses terão uma enorme responsabilidade nas mãos. A escolha do próximo chefe de Estado será fulcral para devolver a Presidência da República a alguém que não querendo deificar a cadeira também não a profane. A alguma personalidade que, não sendo um agelasta, não tente ser o jogral da nação. A um cidadão que, não caindo em discursos oportunistas de moralização da vida pública, seja probo e tenha a preservação das instituições como desígnio maior. E a um estadista que, não ignorando as necessidades do presente, não compactue com quem prescinda de nos dar futuro – e algo mobilizador em que possamos acreditar.

Aos partidos caberá também garantir que não são usados como bolsas de votos para quem, com o maior dos despudores, saltita entre governos e reguladores nem para quem sacrifica o prestígio da chefia da arena parlamentar para alavancar uma campanha condenada à nascença. Tão-pouco para alguém que pretenda, a partir de Belém, ajustar contas com o sistema judiciário e pôr a mão sobre a comunicação social e muito menos para alguém que, fardado de deslumbramento, possa presumir que o regime democrático carece de novas doses das vacinas da disciplina férrea e do respeitinho de antanho.

O próximo ano exige que os potenciais candidatos digam presente e revelem a sensatez de que o país precisa desde 2016. Sem apelos a frentismos táticos, sem fantasmas que as urnas se encarregarão de espantar com oferta de qualidade nos boletins de voto e sem os fingimentos convenientes de que ao Presidente da República tudo é possível realizar (mesmo aquilo que a Constituição não prevê) ou, igualmente perverso, pouco mais compete que existir.

A quem vier depois de Marcelo vai ser confiada a enormíssima missão de reparar o legado de Marcelo: o vazio. E também lhe será exigida a consciência de que, para o conseguir, não basta não ser Marcelo.

Ex-jornalista e especialista em comunicação