
De facto, se não fosse o míldio da batateira[1], provavelmente teria sido Nixon e não J.F.Kennedy quem estaria ao comando durante a crise dos mísseis de Cuba. Isto porque os bisavós paternos e maternos de J.F.Kennedy fizeram parte da vaga de irlandeses que emigraram para os Estados Unidos para fugir à Grande Fome na Irlanda, em meados do século do XIX. Fome provocada justamente pelo míldio, que dizimou os batatais num país onde a batata era a base da alimentação.
Estima-se que tenham morrido cerca de um milhão de irlandeses, e que outros tantos tenham emigrado para os EUA. Os bisavós de J.F. Kennedy foram quatro desses tantos irlandeses. Sem essa fuga pela sobrevivência, talvez Kennedy nunca tivesse nascido. Ou, se acaso os seus antepassados tivessem tido a sorte de sobreviver à fome, talvez nunca tivesse sido presidente dos EUA, morrendo de velho numa quinta, algures na Irlanda (e não aos 46 anos, com uma bala na nuca).
No entanto, mesmo que se tivesse tornado agricultor, muito provavelmente Kennedy não teria sido produtor de batatas, pois, em 1847, foram enviados técnicos para o campo irlandês, para ajudar os agricultores a encontrarem outras culturas alternativas, que não a batata.
Nascia assim a primeira forma moderna de Extensão Rural. Esta, como o nome indica, tinha como objetivo ser uma extensão da academia para as populações, neste caso os agricultores, levando-lhes novas tecnologias e soluções para a agricultura.
No entanto, a comunicação de agricultura não era um facto novo, pois já existia há milhares de anos. Umas placas de argila da Mesopotâmia, que se estima terem quase 4000 anos[2], explicando como combater pragas de ratos e como regar as culturas, são talvez o exemplo mais antigo de comunicação de agricultura. Placas em escrita cuneiforme, a primeira forma de escrita da espécie humana, a qual inicialmente começou a ser usada para registar quantidades de produção e trocas comerciais de produtos agrícolas. Depois vieram os editais, os registos de nascimento e morte. O registo das narrativas e dos rituais religiosos[3]. E a poesia.
A escrita, uma das invenções mais extraordinárias da humanidade, que nos distingue como espécie, só terá sido possível também graças a outra invenção que foi a tecnologia que nos permitiu compreender os solos, o clima e as culturas para produzirmos alimento, chamada agricultura. Esta possibilitou que a espécie humana se estabelecesse e organizasse em povoações, libertando-lhe tempo para criar outras coisas igualmente extraordinárias. Como a poesia.
Se o sair das árvores e o porte ereto nos libertou as mãos, se o fogo, ao cozinhar-nos os alimentos, tornando-os mais fáceis de mastigar, nos libertou espaço para o cérebro, a agricultura deu-nos o tempo de que precisámos para desenvolver aquilo a que chamamos cultura.
A agricultura está tão interligada neste caminho humano que traçamos há milhares de anos que ela própria moldou a História que desde cedo nos é ensinada na escola e que lemos nos livros. O que se semeia e se planta, as pragas e doenças, a água que falta ou abunda, tem sido, ao longo dos tempos, determinante para compreendermos as fronteiras, migrações, êxodos, guerras, mitos e religiões, casamentos por conveniência, ascensão e declínio de ditaduras. E até quem seria o presidente que estaria ao comando durante a crise dos mísseis de Cuba.
Não precisamos de descobrir novos argumentos para fundamentar a importância da agricultura. Sem ela, não teríamos chegado até aqui, ao que somos hoje, como espécie e como cultura. Somos o resultado de uma imensidão de determinantes contribuições que contam a História da nossa sobrevivência. Umas por obra do acaso, outras por intencional engenho humano.
Se a agricultura foi e é perfeita? Não foi, nem é. Tal como não o foram as outras criações humanas, como a medicina, a engenharia e até a poesia, que tem, convenhamos, uns momentos mais altos do que outros…
Por isso mesmo, e citando (com alguma liberdade criativa) o tal presidente, que só o foi por causa do míldio da batateira: "Mais do que perguntarmos o que é que a agricultura fez e poderá fazer por nós, talvez esteja na hora de perguntarmos o que podemos nós fazer por ela."
Especialmente neste mundo dos nossos dias, em visível e assustadora mudança.
[1] Phytophthora infestans
[2] https://www.fao.org/4/w5830e/w5830e03.htm
[3] Fischer, S. R. (2021). A History of Writing
Consultora em Comunicação das Ciências Agrárias e Extensão Rural